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30 de março de 2015

POR UNS DÓLARES A MAIS (PER QUALCHE DOLLARI IN PIÙ) – PRIMEIRO CLÁSSICO DE LEONE


Acima Sergio Lone; abaixo Luciano Vincenzoni
e Sergio Donati.
Assombroso foi o sucesso de “Por um Punhado de Dólares” (Per un Pugno di Dollari), primeiro western de Sergio Leone produzido com orçamento de míseros 200 mil dólares. Inevitável seria uma continuação, desta vez com recursos conseguidos junto a um consórcio europeu (Itália, França, Alemanha) de 700 mil dólares, 50 mil deles para convencer Clint Eastwood a repetir o personagem ‘sem nome’ do filme anterior. Mas nem passava pela cabeça de Leone filmar uma continuação, até porque Akira Kurosawa estava dando uma grande dor de cabeça ao diretor romano, exigindo pagamento pelos direitos pela adaptação de “Yojimbo”. Sergio Leone e Fulvio Morsella escreveram uma sinopse da história a ser filmada, texto que foi entregue a Luciano Vincenzoni para que desenvolvesse o roteiro. Depois de pronto o roteiro de Vincenzoni, Leone não gostou dos diálogos e pediu a Sergio Donati que refizesse boa parte deles. Na história havia ainda dois personagens destacados, além do Monco (Manco no Brasil) que ficaria com Clint Eastwood. Com tantos dólares à disposição, Leone contatou Charles Bronson, como já havia feito por ocasião de “Por um Punhado de Dólares”, e mais uma vez Bronson desdenhou da proposta dizendo que a história era muito ruim. Sergio Leone foi atrás de Lee Van Cleef, cuja carreira andava, ou melhor, desandava num declínio aparentemente irreversível. 17 mil dólares foi o salário oferecido e prontamente aceito pelo ator norte-americano. E para interpretar o vilão El Índio, Leone não abria mão de Gian Maria Volonté, o Ramón Rojo de “Por um Punhado de Dólares”. A primeira vez que a palavra ‘dólar’ entrou num western exibido na Itália foi “Un Dollaro d’Onore”, título italiano de “Onde Começa o Inferno” (Rio Bravo), a obra-prima de Howard Hawks. Gostaram tanto que, perto de uma centena de vezes a moeda norte-americana entrou nos títulos dos westerns spaghetti. A princípio o filme deveria se chamar “Two Magnifici Sconosciuti” (Two Magnificent Strangers), porém o diretor não resistiu à tentação de evocar o título anterior e a palavra mágica ‘dólar’ e o novo western foi chamado de “Por uns Dólares a Mais” (Per Qualche Dollari in Piú). Ennio Morricone compôs os temas principais e como de hábito Leone neles se inspirava durante as filmagens. E a equipe rumou para a Espanha para as locações.



Clint Eastwood e Lee Van Cleef;
abaixo Gian Maria Volonté.
Razões para matar – Manco (Clint Eastwood) é um caçador de recompensas que é surpreendido pela presença na cidade de White Rocks de um segundo bounty hunter, o desconhecido, para ele, Coronel Douglas Mortimer (Lee Van Cleef). Ambos tomam conhecimento que o temido bandido El Índio (Gian Maria Volonté) fugira da cadeia e uma recompensa de 10 mil dólares foi fixada por sua captura vivo ou morto. E a recompensa poderia ser ainda maior se somados os prêmios pelo bando de treze homens comandado por El Índio. Manco e Mortimer concluem que precisam juntar forças para enfrentar tantos bandidos sanguinários e fortemente armados. Mortimer tem uma razão especial para caçar El Índio pois este matara seu cunhado e estuprara sua irmã que comete suicídio durante o estupro. Manco se faz passar por fora-da-lei e consegue ser aceito no bando de El Índio que tenciona assaltar o fortemente guarnecido banco de El Paso. Após o bem sucedido assalto o bando se refugia em Água Caliente, onde é descoberto que Manco é um caçador de recompensas. Novamente reunidos, Mortimer e Manco dizimam a numerosa quadrilha, com Mortimer concretizando a vingança pessoal e matando El Índio.

Lee Van Cleef  despertando a ira em
Klaus Kinski.
O mais seminal dos westerns spaghetti - Se em “Por um Punhado de Dólares”, realizado um ano antes (1964), Sergio Leone havia indicado os caminhos renovadores da linguagem do faroeste, com “Por uns Dólares a Mais” ficou evidente o talento criativo do diretor ao contar, com estilo personalíssimo, uma história que a cada situação mais surpreende o espectador. A simplicidade do roteiro se torna nas mãos de Leone uma inesgotável fonte de acontecimentos inusitados e muitas vezes revestidos de humor cáustico. O Coronel Mortimer acendendo o fósforo na corcunda do bandido Wild (Klaus Kinski) sem que este, no limite extremo do ódio, possa reagir; o flashback do estupro que culmina com a moça pegando o revólver de El Índio e cometendo suicídio enquanto o bandido satisfaz seu desejo sexual; Mortimer e Manco exibindo suas habilidades com armas, tendo seus chapéus alvejados voando. num jogo de quase infantil intimidação; o inexpugnável banco de Yuma, lembrando a arquitetura de Fort Knox (fortificação norte-americana edificada em 1861 e que abriga grande parte do ouro do país); El Índio comentando que Água Caliente se assemelhava a um necrotério, anunciando assim o confronto entre os caçadores de recompensa e o bando que ocorreria em seguida; Manco contando os corpos inertes e calculando a soma das recompensas a receber pelas tantas mortes; a carroça conduzida por Manco carregada com os bandidos amontoados uns sobre os outros. A morbidez de algumas das sequências de “Por uns Dólares a Mais” delineariam para sempre o western spaghetti.

O banco-fortaleza em Yuma; uma carroça cheia de cadáveres.

Eastwood e Van Cleef.
O acerto da improvável dupla - A primorosa primeira parte deste western de Sergio Leone apresenta as três personagens principais. A mais marcante delas é a composição do ex-Coronel Confederado Douglas Mortimer com sua aparência sinistra acentuada pela vestimenta preta na qual se sobressai a intimidadora capa e sobrecapa. Mortimer carrega um incrível arsenal com uma arma para cada situação, incluída uma Derringer escondida na manga direita. Ainda que prefira uma Buntline Special com coronha dimensionada e removível, Mortimer usa com extrema perícia rifles e Colts de sua coleção. Inteligente, calculista, frio, rude e provocador, ainda assim o Coronel é um personagem simpático mesmo antes de ser descoberto que o que o movia era o desejo de vingança. Manco é a tradução da ganância pelos dólares que um dia lhe proporcionarão uma imaginária tranquilidade. Ríspido, maltrata tanto um velho e simplório telegrafista quanto um temido bandido a quem prostra com golpe de karatê. Uma pequena reserva moral faz com que o bounty hunter da cigarrilha não aceite hipocrisia e arranque a estrela de um xerife sem honradez. Juntos Mortimer e Manco formam a mais improvável dupla até então apresentada num western, mesmo considerados os parceiros de “Vera Cruz” (Joe Erin/Burt Lancaster e Ben Trane/Gary Cooper), confessadamente os inspiradores de Leone.


Manco e Mortimer.
Duelo inovador - O sadismo de El Índio é mostrado em sua primeira sequência, quando ainda na cadeia mata friamente o companheiro de cela ‘de quem gostava’. Exacerba sua perversão ao assassinar esposa e filho de um ex-companheiro de crimes que o havia traído, matando-o também. O retrato do vilão é completado com a marijuana que ele nunca deixa de fumar. A série de mortes que ocorrem durante “Por uns Dólares a Mais” preparam o espectador para o confronto final, precedido pela dúvida de qual caçador de recompensas enfrentará El Índio. E mais uma vez Leone foge das convenções dos westerns, mesmo daqueles que tanto estudou, como o próprio “Vera Cruz” de Robert Aldrich. O duelo final ocorre numa arena com Manco como privilegiado espectador, pronto para executar El Índio caso este vença o Coronel, o que evidentemente não ocorre. O mesmo Lee Van Cleef que encontra a morte em “Estigma da Crueldade” (The Bravados) olhando para a foto na tampa de um relógio volta a se encontrar com relógios, outra referência (ampliada) de Leone a um clássico norte-americano. O diretor explora até o limiar possível a emoção que precede o duelo, examinando com a câmara detalhes e principalmente os olhares em close-ups dos contendores.

O drogado El Índio (Gian Maria Volonté);
a irmã do Coronel Douglas Mortimer.
Duelo particular – Lee Van Cleef estava com 40 anos quando filmou “Por uns Dólares a Mais” e Clint Eastwood tinha seis anos a menos que Lee. Porém o personagem do Coronel Mortimer, aos 50 anos de idade, é bastante mais velho que Manco que não perde oportunidade para farpar seu rival. Curiosamente Mortimer é um homem mais voltado à modernidade que Manco, viajando confortavelmente de trem enquanto o jovem cavalga pelas pradarias poeirentas. Mortimer está atualizado com a modernização das armas de fogo, utilizando desde uma Derringer até a Buntline Special com maior alcance de tiro. E é o ex-Coronel Confederado quem conhece e possui os artefatos (químicos) necessários para abrir um cofre sem danificar o dinheiro e os documentos nele contidos. O destaque maior de Manco são as cigarrilhas, sua marca registrada, que ele retira dos bolsos. E Mortimer é mais cerebral que Manco, como comprova quando segue ao encontro do ‘parceiro’ em Água Caliente seguindo sua própria intuição. E Mortimer vence o duelo pessoal ao se defrontar com El Índio, enquanto Manco liquida Groggy (Luigi Pistilli), segundo em importância no bando.

Preparo para o confronto final.

Diálogos sarcásticos.
Diálogos memoráveis - Criar imagens e sequências arrojadas não são suficientes por si só para resultar em um grande filme se o diretor não impor o ritmo ideal. E Leone mescla brilhantemente as insólitas cenas de ação com outras mais lentas e com diálogos saborosos que deleitam o espectador. “O que sugere para eu entrar no bando de El Índio” pergunta Manco a Mortimer, completando: “Um buquê de rosas?”. Em outro momento Manco pergunta a Mortimer: “Você já foi jovem?” ouvindo a resposta: “Sim, já fui imprudente como você”. Depois de humilhado por Mortimer, Wild acredita ser chegado o momento da vingança e oferecendo a corcunda ao Coronel, que está jantando, ouve a resposta deste: “Eu só fumo depois de comer. Volte em dez minutos”. Vincenzoni, Donatti ou o próprio Leone, qual deles teria escrito essa antológica fala, puro Billy Wilder? Provavelmente Vincenzoni que chegou a trabalhar com o diretor vienense. Impossível resistir à graça e leveza dos diálogos combinados com as imagens criadas pelo fecundo Leone, que fazem de “Por uns Dólares a Mais” um filme prazeroso de ser assistido, na mesma linha de “Onde Começa o Inferno”. E se naquele havia a música de Dimitri Tiomkin temperando o filme de Hawks; neste há a música de Ennio Morricone.

Manco ironizando Douglas Mortimer.

O álbum com a trilha sonora de
"Por uns Dólares a Mais".
Menos música e mais ruídos - Sem atingir o fulgor de outras trilhas, entre elas a etérea trilha musical de “Era Uma Vez no Oeste” (C’Era Uma Volta Il West), Morricone compôs uma trilha que pode ser chamada de eficiente. O destaque fica para o tema “The Colonel” e alguns momentos em que as guitarras tocam ao estilo imortalizado pelo grupo inglês The Shadows. Em “Por uns Dólares a Mais” a música do grande compositor italiano está mais ruidosa e menos melodiosa, interferindo menos na concepção fílmica. Com os interiores rodados em Cinecittà, as locações foram feitas na Espanha, onde a cidade de El Paso foi construída em Tabernas; White Rock é a cidade western de Colmenar Viejo, que já existia; Água Caliente é, na realidade a vila toda branca de Los Albaricoques e o Deserto de Almería serviu de cenário para as demais sequências. “Por uns Dólares a Mais” foi filmado em 12 semanas e sacramentou o talento de Sergio Leone, pavimentando o caminho para seus projetos mais pretensiosos que filmaria a seguir.

O cenário de Los Albaricoques; à direita a cidade de Yuma construída em Tabernas.

Western clássico - Clint Eastwood repete o laconismo do ‘Estranho Sem Nome’ (Joe) de “Por um Punhado de Dólares”, enquanto Lee Van Cleef é a grande e agradável surpresa, brilhando intensamente e confirmando ser um bom ator pouquíssimo prestigiado em Hollywood após uma carreira então de 14 anos. Gian Maria Volonté antes ainda da consagração como ator, que encheria sua estante de prêmios, é perfeito como o vilão principal. Klaus Kinski nas duas sequências em que tem destaque dá uma amostra da vileza que o tornaria o mais odiado dos homens maus do cinema. Luigi Pistilli é o ardiloso bandido que tenta enganar El Índio. A grande lista de bandidos tem Mario Brega patranheiro como sempre, só que desta vez ambiguamente terno com seu chefe El Índio. Para muitos (Paulo Eduardo Amaral Lopes é um deles), “Por uns Dólares a Mais” é superior ao elaboradíssimo “Três Homens em Conflito”, reputado como o ponto alto da ‘Trilogia dos Dólares’ de Sergio Leone. Nenhuma dúvida porém existe que “Por uns Dólares a Mais” é um western fascinante, delicioso de ser assistido e clássico autêntico do gênero.

Lee Van Cleef e Klaus Kinski; Clint Eastwood e Lee Van Cleef.

A arena onde ocorre o duelo entre Mortimer e El Índio.


6 comentários:

  1. Olá, Darci!

    Para muitos, a trama de "Por uns Dólares a Mais" é superior a de "Três Homens em Conflito". Para começo de conversa, a maneira como o segredo do banco chega aos ouvidos de El Indio é genial e já nos mostra que vem algo grandioso por aí.

    Você foi feliz em lembrar de algumas referências, especialmente o filme "Estigma da Crueldade", de Henry King, onde Lee Van Cleef interpreta um bandido que está sendo perseguido por um homem que perdeu a esposa e mantém a foto dela em um medalhão. Em "Por uns Dólares a Mais" ocorre o inverso, o Coronel Mortimer, interpretado por Van Cleef, leva a foto de sua irmã assassinada em um medalhão enquanto ele persegue o bandido que a matou. E também o conjunto The Shadows, cujas músicas obviamente serviram de inspiração para as dos Spaghettis.

    Um dos coadjuvantes neste filme é José Terron, que apesar de nunca creditado, tinha seu rosto característico reconhecido nas peles de vários bandidos e capangas em diversos filmes deste gênero.

    Parabéns por mais um brilhante texto!
    Um abraço!!

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  2. Olá, Thomaz - Obrigado pelo elogio. Confesso que tenho dúvidas sobre qual dos dois filmes da Trilogia dos Dólares seja o melhor. O segundo é excepcional. - Abraço do Darci.

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  3. Meu preferido da trilogia! Mas confesso que fiquei em dúvida ao chegar nesta decisão. Pois The Good, the Bad...e outro clássico.

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  4. Estou a procura de uma gravação antiga da TV, deste filme, seja em VHS ou já convertida em DVD, compro uma cópia se algum colecionador a tiver, "mofando" em sua estante! O motivo de ter de ser gravado da TV, e puro saudosismo. grato senhores.

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  5. Boa noite prezados. Parabéns a Darci pela excelente resenha, mas discordo no ponto em que colocou a opinião do senhor Carlos Eduardo Amaral sobre Por uns dólares a mais ser superior a Três homens em conflito - prefiro o título original O bom, o mau e o feio - este último é melhor,a primeira obra-prima de Leone. A meu ver Por uns Dólares...é excelente, não chega a ser um obra-prima. O primeiro, Por um punhado de dólares já foi um divisor de águas e é bem mais violento que o segundo. Ele inaugura a violência estilizada que influenciou tudo que veio depois no western. A partir desses três filmes o western nunca mais foi o mesmo.
    aprigiodesign@yahoo.com.br

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