UMA REVISTA ELETRÔNICA QUE FOCALIZA O GÊNERO WESTERN

29 de março de 2017

JOGOS E TRAPAÇAS / ONDE OS HOMENS SÃO HOMENS (McCABE & MRS. MILER) – O INSÓLITO WESTERN DE ROBERT ALTMAN


Robert Altman; abaixo Altman
com Beatty e Vilmos Zsigmond.
Com “M.A.S.H”, seu terceiro longa-metragem, Robert Altman alcançou enorme sucesso e chamou a atenção da crítica para seu talento confirmado mais tarde com “Nashville”. Antes disso Altman passara 15 anos dirigindo séries para a televisão, entre elas “Bonanza”, “Maverick”, “Bronco”, “Sugarfoot” e outras séries westerns. Não foi, portanto, novidade para o incansável diretor nascido em Kansas City realizar faroestes, filmando o cultuado “Jogos e Trapaças / Quando um Homem é Homem” em 1971 e o massacrado pela crítica “Oeste Selvagem” (Buffalo Bill and the Indians) em 1975. Novidade mesmo foi surgir um western insólito como “Jogos e Trapaças / Quando um Homem é Homem”, diferente na trama, na concepção e especialmente na ambientação. A história original, de autoria de Edmund Naughton foi escrita em 1959 e transformada em roteiro por Brian McKay em parceria com o próprio Altman. O produtor David Foster levou a numerosa equipe para British Columbia, no Canadá, onde havia as perfeitas condições climáticas para satisfazer o exigente diretor. Para capturar as imagens foi chamado o cinegrafista húngaro Vilmos Zsigmond, o mesmo do belo e incomum “Pistoleiro Sem Destino” (The Hired Gun), também de 1971. A música para o filme era um problema a resolver e foi solucionado após Altman conhecer e ficar impressionado com o álbum “The Songs of Leonard Cohen”. O compositor canadense cedeu as três canções que ele mesmo canta e que serviram como leitmotiv para o filme.


Warren Beatty
Um empreendedor chamado McCabe - Um povoado chamado Presbyterian Church floresce numa inóspita região mineiradora de Washington, no Noroeste norte-americano, onde chega Jack McCabe (Warren Beatty). É lá que McCabe vê a possibilidade de ganhar dinheiro com um saloon e consequentemente com bebida e prostituição. Respeitado por supostamente haver matado um famoso pistoleiro, McCabe vê seu negócio prosperar com a chegada de meretrizes vindas de Seattle, e com a parceria feita com a cortesã Constance Miller (Julie Christie). Tudo corre bem com o crescimento de Presbyterian Church até que uma empresa interessada em explorar zinco decide comprar as propriedades de McCabe. Este estima um valor acima do razoável e os emissários da corporação resolvem fazer uso do poder de persuasão do pistoleiro Butler (Jack Millais) que chega à cidade acompanhado de dois capangas. Inicialmente intimidado, McCabe opta por enfrentar os três homens num desfecho brutal para todos.

Warren Beatty
Faroeste sombrio e triste - Diferentemente de seu estilo habitual de cruzar diversas histórias, numerosos personagens e diálogos abundantes, “Jogos e Trapaças” tem uma narrativa simples que deságua no confronto do capitalismo poderoso contra um pequeno e arrojado homem de negócios. Nesse pano de fundo Robert Altman concebeu um western incomum com visual e atmosfera jamais vistos no gênero. Certo que André de Toth já havia realizado em 1959 “Quadrilha Maldita” (Day of the Outlaw) um brilhante faroeste transcorrido inteiramente em região de nevascas. E não custa lembrar que Sergio Corbucci nos deu o admirável “O Vingador Silencioso” (Il Grande Silenzio), em 1968, inesquecível igualmente por suas sequências desenroladas na neve. Improvável que Altman tivesse visto o western de Corbucci com o qual guarda similitudes e, mais que esses dois filmes citados, realizou um assustador, sombrio e triste faroeste. Desde os créditos iniciais a voz monocórdia de Leonard Cohen indica a melancolia que permeará a desventura de McCabe associado à menos trágica mas igualmente infeliz Mrs. Miller.

Julie Christie
Fraqueza mal disfarçada - Esconde-se sob a aparência de um homem carismático, resoluto e destemido que Jack McCabe inicialmente passa, um farsante que somente não engana a experiente Mrs. Miller. Percebe ela que seu sócio sequer domina os números da contabilidade do dinheiro que o bordel ‘House of Fortune’ arrecada. O fanfarrão que parece ainda maior vestido com sua enorme pele de urso se impõe com facilidade aos homens simples que vivem em Presbyterian Church e que se apequena diante da cortesã que descobre amar. Tão néscio é McCabe que mal suspeita ser a linda madame viciada em ópio. Pouco se importando em melhor desenvolver os personagens, Altman perde uma excelente oportunidade de criar uma das mulheres mais fascinantes de todos os westerns. Nada se sabe de Mrs. Miller, além de sua capacidade de bem administrar o prostíbulo e da fraqueza de se entregar ao vício que esconde do amante. Após exercitar sua fanfarronice o desajeitado McCabe se mostra frio diante de um jovem cowboy (Keith Carradine) que imagina ter vindo por ordem dos interessados em comprar sua mina. Diante, porém, de Butler, o verdadeiro pistoleiro, McCabe se aterroriza instantaneamente pois sabe que está diante da morte.

Warren Beatty; no centro Jace Van
Der Veen; abaixo Manfred Schulz
Atirando pelas costas - Intitulado em seu lançamento nos cinemas no Brasil como “Jogos e Trapaças”, quando de sua edição em DVD teve o título alterado para “Quando os Homens são Homens”, muito mais adequado para um western, na linha de ‘Os Brutos Também Amam’. Menos ruins esses títulos que o recebido pelo western de Altman em Portugal, onde foi chamado “A Noite Fez-se para Amar”. Mas afinal, quando os homens são homens? Um personagem que surge como advogado, e que almeja ser um novo Abraham Lincoln, inconvincentemente convence McCabe com a ideia que nunca se atingirá a liberdade ou se fará justiça sem o sacrifício de alguns, frase que o apalermado McCabe repete para Mrs. Miller antes de decidir partir para o suicídio que é enfrentar Butler e seus dois capangas. Num filme que não se preocupa em ser claro, a determinação do jogador soa estranha e injustificada mas é suficiente para criar um arrebatador e realista momento de ação. É quando ainda mais o iconoclasta Altman desmantela a imagem de um herói. McCabe primeiro se defronta com o presunçoso jovem pistoleiro chamado Kid (Manfred Schulz) reedição do personagem ‘Eddie’ criado Richard Jaeckel em “O Matador” (The Gunfighter) e pelo próprio Jaeckel revivido em outros westerns. O inepto McCabe acerta Kid pelas costas e mesmo assim é atingido por ele na perna e na barriga. Arrastando-se com as forças que lhe restam McCabe mata também pelas costas o segundo pistoleiro e Altman sacramenta o revisionismo do Velho Oeste que seu filme do começo ao fim estampa. O confronto final mostra que mesmo um frio e experiente pistoleiro de aluguel como Butler não escapa de ser abatido por alguém inábil como McCabe que baleado por três vezes ainda saca uma Deringer e acerta o oponente ‘right between the eyes’ como disse antes de morrer Liberty Valance.

Hugh Mallais

Acima Presbyterian Church; no centro Keith
Carradine;abaixo Carradine no bordel.
A poética câmara de Zsigmond - Mesmo nos filmes menos bem sucedidos de Altman jamais faltam diálogos interessantes na fartura de tipos que ele cria. Em “Jogos e Trapaças” não são os diálogos sarcásticos que chamam a atenção num filme cuja primeira metade transcorre tão modorrentamente quanto era a vida em Presbyterian Church. A notável Direção de arte (Al Locatelli-Philip Thomas) e a fotografia de Vilmos Zsigmond impressionam mais que tudo, somados à desolação produzida pela música de Leonard Cohen. Vale dizer que as canções de Cohen “The Stranger Song”, “Sisters of Mercy” e “Winter Lady” existiam antes do filme de Altman, coincidindo muitos de seus versos com as imagens e situações de “Jogos e Trapaças”. Não há música incidental de estúdio, exceto o uso de violino e flauta tocados por personagens e as canções de Cohen desdobradas singelamente por um violão. E se faltam diálogos característicos dos filmes de Altman sobram chuva, neve, nebulosidade, lama que a câmara de Zsigmond transforma em poesia. Uma pena que para isso o cinegrafista húngaro tenha utilizado excessivamente a técnica de granulação das imagens para torná-las brumosas, esfumaçadas e sombrias. Houve muitas queixas quanto á qualidade do áudio deste filme, a ponto de tornar alguns diálogos incompreensíveis, fenômeno comum no cinema nacional. O bem legendado DVD favorece a inteira compreensão e mais ainda, o que é inusitado, todos os versos cantados por Leonard Cohen são legendados, para sorte nossa.

Hugh Mallais
Antônio das Mortes na neve - Warren Beatty era um dos mais destacados nomes de Hollywood após o êxito de “Bonnie & Clyde”, mesmo com seus limitados recursos interpretativos. Sem brilhar, Beatty compõe bem McCabe, especialmente quando o cinismo que Beatty naturalmente expressa se faz necessário. Indicada para o Oscar de Melhor Atriz, Julie Christie tem atuação pouco expressiva, ela que o mundo aprendera a admirar como a Lara de “Dr. Jivago” e mais ainda em filmes como “Darling” e “Farenheit 451”. Julie e Warren Beatty viviam juntos quando da produção de “Jogos e Trapaças”. Destacam-se ainda Keith Carradine em sua estreia no cinema e Hugh Millais, este responsável pelo grande momento do filme quando um memorável diálogo reduz McCabe à sua pequenez moral diante dos, até então, seus admiradores de Presbyterian Church. Incrível como o pistoleiro criado por Hugh Millais lembra nosso Maurício do Vale como ‘Antônio das Mortes’ dos filmes de Glauber Rocha.

Julie Christie

Robert Altman; Warren Beatty
Prestígio crescente - Mesmo com os nomes de Warren Beatty e Julie Christie encabeçando o elenco, “Jogos e Trapaças” não despertou a atenção do grande público, ainda que não tenha se constituído em fracasso comercial como a maioria dos filmes de Robert Altman. Porém este insólito western não fez outra coisa que não crescer em prestígio através das décadas seguintes, o que muito se deve a críticos como Pauline Kael e Roger Ebert, dois dos muitos que vêem “Jogos e Trapaças” como uma obra-prima e o melhor filme de Altman. Recentemente, uma enquete da British Broadcasting Corporation o apontou como o 16.º melhor filme norte-americano de todos os tempos. Na enquete decenal da revista “Sight & Sound” realizada em 2012, “Jogos e Trapaças” foi o 13.º western mais votado, à frente de westerns estimados como “Os Brutos Também Amam” (Shane), “Os Imperdoáveis” (Unforgiven) e “Da Terra Nascem os Homens” (The Big Country), respectivamente 15.º, 22.º e 30.º colocados. Não um filme para apreciadores dos westerns clássicos ou mesmo dos westerns-spaghetti, “Jogos e Trapaças” é um filme com inegáveis qualidades e imprescindível para os fãs do gênero, mesmo que, como quase todos os filmes de Robert Altman aplique-se o ‘love it or leave it.


10 de março de 2017

RASTROS DE ÓDIO (THE SEARCHERS) – JOHN FORD E JOHN WAYNE NO MELHOR DE TODOS OS WESTERNS


John Wayne e Natalie Wood
Quando Ethan Edwards elevou a frágil e assustada sobrinha acima de sua cabeça e abraçando-a lhe disse “Let’s go home, Debbie”, estava o cinema sendo elevado a um momento maior de grandeza e poesia. Porém, ao longo das duas horas deste faroeste, o autor da frase e do delicado gesto foi mostrado como o mais sombrio e amedrontador personagem principal que um western jamais exibira ou exibiria. De forma devastadora John Ford rompeu com os arquétipos de heróis que o gênero criara e apresentou um homem não só rude e corajoso, mas e principalmente neurótico, preconceituoso e por fim paradoxal no seu comportamento. Na década de 50 acenderam-se nos Estados Unidos os questionamentos sobre as injustiças sociais e, justamente em meio aos ainda tímidos movimentos, John Ford realizou um western que mostrou cruamente a realidade do pensamento dos norte-americanos. Tachado por muitos analistas como um filme racista, em “Rastros de Ódio” o personagem principal (Ethan Edwards), odeia os índios, para ele seres desumanos e sanguinários. Aos poucos, no entanto, Ford mostra que Ethan pouco difere de Cicatriz, o feroz chefe Comanche que destruiu a propriedade de seu irmão dizimando a família toda, ou quase toda.


Henry Brandon e Lana Lisa Wood
A longa busca - Três anos após o fim da Guerra Civil, Ethan Edwards (John Wayne) que lutara pelo Exército Confederado, retorna ao rancho do irmão Aaron (Walter Coy) que o acolhe friamente, ao contrário da cunhada Martha (Dorothy Jordan) e dos sobrinhos. Convocados por Samuel Johnston Clayton, misto de capitão dos Texas Rangers e reverendo, Ethan e seu sobrinho Martin Pawley (Jeffrey Hunter) deixam a propriedade em perseguição a Comanches hostis. Percebendo terem sido enganados pelos índios, Ethan e Martin retornam ao rancho que foi devastado pelos índios liderados por Cicatriz (Henry Brandon), restando apenas os corpos carbonizados. O chefe Comanche poupou e levou consigo, as irmãs Lucy (Pippa Scott) e Debbie (Lana Lisa Wood), provocando em Ethan Edwards a decisão de encontrá-las onde quer que estivessem. Ethan e Martin encetam uma busca que dura cinco anos, durante a qual descobrem que Lucy foi morta e Debbie (Natalie Wood) foi feita uma das mulheres de Cicatriz. Disposto a matar a sobrinha, finalmente Ethan a encontra, deixando de lado sua obcecada determinação e levando Debbie de volta para junto de uma família branca.

Vera Miles; John Wayne, Beulah Archuletta
e Jeffrey Hunter
Tomada de consciência - “Rastros de Ódio” toca profundamente no tema do racismo isto num tempo (década de 50) em que os índios haviam sido praticamente dizimados pelos brancos, especialmente pelos soldados da cavalaria com seus garbosos uniformes azuis. Conhecendo-se o pensamento liberal de John Ford, é perfeitamente possível interpretar este filme como um libelo diante das flagrantes injustiças sociais, passadas e contemporâneas, da América do Norte. Ethan Edwards exala preconceito por todos os poros, não perdoando sequer seu sobrinho por este ter sangue índio (1/6 Cherokee). Mas o próprio Martin Pawley, com sangue predominantemente inglês como ele mesmo lembra, tem oportunidade de demonstrar o desprezo pela infeliz índia Look (Beulah Archuletta), que inadvertidamente se torna sua esposa segundo o costume dos índios. A doce Laurie Jorgensen (Vera Milles) descendente de nórdicos e seu alegre pretendente Charlie McCorry (Ken Curtis) não deixam por menos e igualmente expressam seus preconceitos durante a leitura de uma carta enviada por Martin. A sequência crucial deste western ocorre com Ethan Edwards abraçando a desonrada e maculada (segundo seu código particular) Debbie e levando-a para um novo lar. Como faz usualmente, John Ford deixa para o espectador decidir se o resoluto Ethan mudou devido à lembrança de Martha transferida para Debbie em seus braços ou por uma tomada de consciência que mesmo homens irracionais como Ethan podem vir a ter.

Walter Coy, John Wayne e Dorothy Jordan;
Dorothy Jordan (abaixo)
Triângulo familiar - Obra de gênio realizada sem maiores pretensões, “Rastros de Ódio” além de seu inequívoco aspecto social é um western deslumbrante em sua beleza plástica. Cada fotograma, especialmente aqueles capturados no Monument Valley, mais parecem pinturas extraordinárias com personagens do Velho Oeste em movimento. Fosse apenas isso e este filme seria, como tantos, mero álbum de magníficos cenários. Há, porém, nos gestos e frases de cada personagem a sutileza que somente um diretor como Ford é capaz de incutir. Mesmo sem diálogos, como na admirável sequência em que Martha acariciando o sobretudo de Ethan demonstra o amor que sente pelo cunhado. Tão magnífico momento não poderia ser melhor completado que com o olhar de desaprovação do Capitão-Reverendo. Recorde-se que o incomum triângulo familiar não consta do livro “The Searchers” de Alan LeMay, tendo sido criado por Ford e o roteirista Frank S. Nugent com o objetivo de mais acentuadamente justificar a obstinada busca de Ethan Edwards pela sobrinha. E Ford sabiamente ambíguo lança a dúvida se Debbie seria apenas sobrinha ou filha mesmo de Ethan, reforçando essa questão com seu afastamento por tanto tempo após finda a guerra. A hostilidade do execrável e cobiçoso irmão Aaron perguntando a Ethan por que ele voltou se desmancha diante das moedas que lhe traz Ethan, o que mais os contrapõem aos olhos de Martha. Fica evidente que parte da reação de Aaron tem fundamento num passado que somente ele, Martha e Ethan conhecem.

Dorothy Jordan e John Wayne; Ward Bond, John Wayne e Dorothy Jordan

Western racista? - A selvageria de Ethan e de Cicatriz são atenuadas pelas imagens de esplendorosa beleza e Ford praticamente nada de violência coloca na tela, apenas seus efeitos devastadores. O Mestre arrebata visualmente sem se esquecer daquilo que precisa ser dito, como quando Martin Pawley ao se deparar com o massacre de Washita River pergunta por que os soldados tiveram que matar ‘Look’ (Beulah Archuletta), concluindo: “Ela nunca fez mal a ninguém”, frase que dever ser estendida a toda raça vermelha exterminada pelos brancos, não só seus bravos guerreiros mas também mulheres crianças e velhos. Cicatriz ao exibir os escalpos lembra que os brancos mataram seus dois filhos e para cada filho que perdeu retira muitos escalpos. A sede por sangue é justificada tanto pelos aniquilados nativos quanto pelos brancos que querem expandir sua civilização. “Rastros de Ódio” não é um filme racista, mas sim denuncia essa odiosa forma de pensamento.

John Wayne Jeffrey Hunter; Natalie Wood

Na foto abaixo John Wayne
‘Descuídos’ de John Ford - Com tamanha carga psicológica e social, “Rastros de Ódio” é um fascinante western que contém belos momentos de ação, ainda que muitos reparos a eles possam ser feitos pelos ‘descuidos’ característicos de Ford durante as filmagens. Comumente filmando em ‘one-take’, o diretor entendia que o público não iria se preocupar com pequenos detalhes, para ele irrelevantes, mas que uma obra desta dimensão bem mereceria ter evitado. Entre erros grosseiros de continuidade o mais gritante é a perseguição dos índios aos Rangers e colonos, com os perseguidores num momento próximos poucos metros e em seguida se distanciando inexplicavelmente. Ou ainda quando da carga da cavalaria contra a tribo estranhamente desguarnecida sob inaceitável mudanças de luminosidade com o uso de lentes? Uma sequência fácil de ser refilmada como a do índio morto que, antes de ter os olhos alvejados por Ethan Edwards, respira saudavelmente comprovam negligência que deve ser atribuída ao diretor. Mesmo diante da imponência deste grande western é difícil fechar os olhos, como imaginava Ford, a estes pormenores que, arrasariam qualquer outro filme mas não destroem “Rastros de Ódio”. Perguntado pelo escritor Joseph McBride sobre este western, Ford respondeu laconicamente: “É um bom filme que rendeu um bom dinheiro e esse era o objetivo”. Seria até possível imaginar que este seria um faroeste comum, ainda que dirigido por John Ford e estrelado por John Wayne, o que por sis ó o diferencia enormemente. Ainda assim, mesmo na versões recentes remasterizadas, lá está um inoportuno veículo transitando com faróis acesos numa estrada à direita na sequência em que a Cavalaria segue sobre a neve.

Em primeiro plano Ward Bond (acima)
e Olive Carey (abaixo)
Comicidade duvidosa - Ford encontra espaço como não poderia deixar de ser para mostrar a idealizada comunidade que gostava de focalizar em seus filmes. A sequência de baile abrilhantada musicalmente pelo grupo vocal-instrumental Sons of Pioneers é abruptamente interrompida pela chegada de Ethan e Martin, dando lugar a um dos momentos de comédia, desta vez em forma de jocosamente respeitosa luta. Mas é durante o casamento que é dita a irresistível frase “Foi uma boa festa de casamento, considerando-se que não houve casamento...” (Ward Bond). Ou ainda quando Ken Curtis pede a Jeffrey Hunter abraçado a Vera Miles: “Eu agradeceria se você soltasse a minha noiva”. Esses achados do roteiro de Frank S. Nugent convivem com os momentos pretensamente divertidos, alguns excessivos mesmo como a sequência da ‘cirurgia’ no traseiro do Reverendo-Capitão ou a desprezível e nada engraçada atitude de Martin e Ethan com a índia Look. Por outro lado, quem mais senão Ford poderia imortalizar Mose Harper (Hank Worden) um dos mais marcantes e engraçados personagens secundários de um western clássico?

O pós-casamento do matrimônio que não aconteceu

John Wayne e Jeffrey Hunter
Suprema interpretação - Tantas e tantas vezes John Wayne mostrou ser bom ator derrubando os argumentos que era sempre o mesmo nos filmes independentemente do personagem que interpretava. Como Ethan Edwards o Duke tem o supremo desempenho de sua carreira, emocionando como o vingativo, preconceituoso rude e irritadiço ex-confederado que sensibiliza o espectador, não raro até às lágrimas, quando a porta se fecha ao final excluindo-o da civilização que se forma, ele que é o mais desajustado personagem dos westerns de John Ford. Wayne é tão majestoso e poderoso quanto o próprio Monument Valley. Jeffrey Hunter tem igualmente o melhor desempenho de sua carreira, mesmo sofrendo a inevitável intimidação de Wayne. Glenn Frankell, autor do livro “The Searchers” sobre as origens do filme diz com propriedade que a relação Ethan-Martin é uma reprodução de como era a relação entre Ford-Wayne. Lembre-se ainda que no livro de Alan LeMay é Martin Pawley e não Ethan Edwards o principal personagem. Henry Brandon mereceria muito mais tempo no filme com sua impressionante personificação como o sinistro Cicatriz ele que quando entra em cena traz consigo a ameaça e o medo. Ford não era o que se costuma chamar de ‘diretor de atores’, pouco se atendo a minúcias interpretativas, ainda assim extraía excelentes performances de seus atores que magicamente e sem muitos ensaios entendiam o que o Mestre queria. Vera Miles como Laurie Jorgensen é um exemplo disso. Estupendo ator característico, Ward Bond é o responsável por um momento de pura arte interpretativa silenciosa na sequência do enlevo de Martha antes da partida de Ethan. Natalie Wood está encantadora como índia num pequeno papel aos 16 anos de idade. E com que satisfação se assiste a um elenco perfeito com a veterana Olive Carey e Dorothy Jordan, esta esposa do produtor Merian C. Cooper e ainda Harry Carey Jr., Walter Coy, Hank Worden, Antonio Moreno e John Qualen.

A maravilhosa cinematografia de Winton C. Hoch
Beleza insuperável de imagens – Não inteiramente satisfeito com a trilha composta por Max Steiner, John Ford recrutou o grupo Sons of Pioneers que contribuiu bastante para a magnífica música de “Rastros de Ódio”. Curiosamente, o premiado Steiner realizou um trabalho verdadeiramente memorável mesclando instrumentos de percussão com os de sopro que tanto admira e criando a adequada atmosfera sonora especialmente para sequências passadas no Monument Valley. Adaptou ainda o maestro-compositor austro-húngaro diversas canções tradicionais, destacando “Lorena” para o lírico encontro de Ethan com Martha e a família. No início e final ouve-se “The Searchers”, composta especialmente por Stan Jones para o filme de Ford. Destaque ainda maior na parte técnica fica para a exuberante fotografia de Winton C. Hoch que faz de “Rastros de Ódio” um espetáculo difícil de ser esquecido pela beleza de suas imagens, superando o igualmente maravilhoso “Legião Invencível”, que teve também a cinematografia de Winton C. Hoch. Após três prêmios Oscar da Academia de Hollywood por “Joana d’Arc” (1948), “Legião Invencível” e “Depois do Vendaval”, Winton C. Hoch sequer foi lembrado por este seu trabalho.

Texas Rangers no Monument Valley; o retorno à fazenda dos Jorgensen

John Wayne e John Ford
Obra de arte cinematográfica - A cada revisão “Rastros de Ódio” parece melhor, maior e mais importante. Não por outra razão é um dos filmes mais estudados da história do cinema pela excepcional geração de cineastas formada nos anos 70 e 80, diretores a quem muito se deve também ao status adquirido por este filme de John Ford através dos anos. Senão o melhor filme já feito, um dos melhores, conforme atestam tantas enquetes, entre elas as decenais da revista inglesa “Sight & Sound”. A parceria Ford-Wayne que resultou em tantos brilhantes filmes atingiu com “Rastros de Ódio” seu ponto mais alto, inquestionável verdadeira obra de arte cinematográfica. Esta resenha crítica foi feita para comemorar o 60.º aniversário do lançamento de “Rastros de Ódio” no Brasil, fato que ocorreu em março de 1957. Outras postagens abordando diferentes aspectos desta obra-prima de John Ford podem ser lidos neste blog nos seguintes links:


http://westerncinemania.blogspot.com.br/2015/02/westerntestemania-n-33-rastros-de-odio.html

Hank Worden, John Qualen e Olive Carey; John Wayne